quinta-feira

Barba Por Fazer

(episódio III)


(...)Já no fundo da sala, olhando eu para trás, percebi Estela acenando eufórica, apontando um lugar guardado para mim ao seu lado. Encafifado e corcunda, me dirigi até aquela poltrona azul marinho. Sentei... desajeitoso.
Como a aula já corria, trocamos apenas balanços de cabeça em sincronia e um sorriso (o meu tímido, o dela carinhoso e amigo). Permanecemos mudos até aquela aula de Literatura findar-se, senão, num breve momento - Estela, ao perceber meu espírito - coisa que fazia com algum tipo de sexto sentido - torto e murcho, me perguntou em cochicho se eu estava bem, Ahan... respondi, embaraçado num muco de palavas (como se pudesse esconder alguma emoção da minha amiga) Ela então me respondeu com um olhar fingido de desconfiança...

Simulava interesse numa conversa com o professor de matemática que entrara e Estela, sobre nem lembro o quê, no intervalo entra as aulas. Entre as pausas das vozes em busca de assunto, espiava Ella... De longe, e assim preferia... não queria mais embaraços, ainda mais com ela.



                                          Estava com medo de você



                                          Medo de você me ver



                                          tão desapaixonado por mim...



Pela terceira vez que a fitei, como se notasse minha observação, Ella pareceu atuar só pra mim... Pondo a mão no queixo, acariciando a boca e fazendo covinha de um lado só enquanto escutava sua amiga, que contava com afinco alguma história...
Não, não terei o desatino de tentar, falhamente, lhe dar uma descrição de Ella... até mesmo porque, caso não saiba, as pessoas quando amam recebem novos olhos... dados por um certo deus, esses olhos possuem dentes e 13 pares de línguas...

Bem... os dentes são para sorrirem os olhos, cada vez que o amor lhe invade as retinas...

As línguas... Ah, essas línguas! A primeira delas conta à segunda, com todos pedacinhos de detalhe, cada aparição do amante... A segunda repete a história enfeitando os fatos com um pouco mais de vigor e emoção à terceira. Esta faz o mesmo à quarta, dando maior ênfase nas passagens que julga mais bonitas. A quarta prossegue a afabulação, contando à quinta, que conta à sexta, que repete à sétima, que faz igual à oitava e assim sucessivamente... Até chegar à última das vinte e seis línguas... Esta narra a mais bela e sublime visão ao coração. Ele então, inocente, bate... tão feliz.

O mesmo se segue com os outros sentidos - nos ouvidos frementes as palavras tristes se envolvem de drama, e as felizes são sempre acompanhadas de "La vie en rose" tocando ao fundo (aí está a multifuncionalidade dos 13 pares de línguas...)
Isto, meu caro... é o que faz com que uma lista de compras soe feito poesia quando dita pelo bem-querer de quem a ouve (já quando o amor se esvai, uma poesia pode soar feito uma lista de compras...)

Enfim, o que quero tentar dizer é que não sou capaz de discernir até onde vai a beleza dessa garota, e onde começa minha imaginação apaixonada... fruto dessa conspiração tamanha dos meus sentidos por culpa tal desse deus, que se diverte implantando malditas línguas fofoqueiras em reles mortais...

Mas chega de filosofia, estória, mitologia, fábula, tolice minha ou seja lá que for...

Continuaram-se as conversações na classe, mas eu, já à milhas e milhas do assunto e daquelas vozes, rabiscava algo que me ocorria no momento, em meu caderno:


                        "Estava com medo de você



                         Medo de você me ver



                         tão desapaixonado por mim..."


Foi quando, repentinamente, uma correnteza me invadiu a alma...
e foram águas e águas
me varrendo,
          me girando,
                 me arrastando
por oceanos sem fim... até o cais
cheguei
ofegante à superfície.


Ah... e foi tão doce aquele beijo súbito! Aqueles lábios mornos carimbando minha bochecha atônita, por uma fração infinita, mas tão pequenina, de segundos... Minha barba por fazer, desesperada, tentava em vão agarrar-se àqueles beiços. De pé ficou pedindo-lhes que voltassem, mas eles escorreram... lisos, fugiram.
E se abriram, dando licença às palavras tão meninas que vieram...
"Olá, Camafeu..." (em meus ouvidos, já se introduzia um certo cantarolar francês...)


Era Ella, só podia ser ela...





Um comentário:

  1. Adorei a aparição da Ella. A história está ficando cada vez melhor :)

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