sexta-feira

menino

  É raro te ver sorrir. Sim. Te vejo rir, gargalhar - aquele teu riso torto e gargalhada quase afetada: ambos puxei. Mas sorrir, sorrir mesmo, não. Naquele dia, sorria. Seus dentes amarelos tão desacostumados a se alinharem em fila indiana se contorciam todos para caberem na fotografia. Ah... e você tava mesmo tão feliz ao lado de seus colegas - distantes, e daí? Colegas. Também não sou de muitos amigos...
    Percebi quando a mãe voltou do médico, um dia antes, um ar diferente. Uma ruga a mais. A pontinha do nariz vermelha como de um palhaço muito triste.
  Um eufemismo dizer benigno pra uma coisa dessas. "Se crescer de um lado se esparrama para seus olhos, se crescer do outro, afetará o tato". Como é medonho ver nossas vidas assim tão frágeis... Nossas vidas de tão delgado vidro sobre essa vasta ventânia vermelha que é a própria vida.
  
  Te visitei mais tarde. Você estava lá. Num sono profundo... mas que de ora em ora subitamente despertava, pasmo, parecendo querer levantar-se da cama. Quando lhe chamava pelo nome abria levemente os olhos, mas logo o sono farmacopeico te vencia e te afundava de volta ao travesseiro.
  Mas não estava fraco, não. Estava forte como sempre... Teu peito imenso dourado e vermelho. Como fumaça os pelos grisalhos de um zeus.

Quando teu coração batia veloz teu peito cantava. E as máquinas o traduziam num dedilhado mágico. Quando voltar pra casa quero te contar: era um arpejo de mi bemol maior que teu peito cantava.

  Você veio de longe. Você veio do sul, carregando sobre suas costas sacas e sacas de soja. E chegou aqui. Chegou nessa vida. Chegou até mim e me deu a vida que tenho:
vida alegre e triste
mesquinha porém gigante
pequenina e rara como toda vida é


De ti herdei a mente mergulhada em si e o sangue quente e aflito de pássaro. E quem nos assisti assim de longe, nosso passo e pensar lento, imagina que é tudo calma... 


Paramos aqui. Já te vejo depositar algumas sacas sobre minhas costas... Está pesado mas não te direi. É que sou fraco. Ainda é muito pouco, eu sei. Será que Deus não dá mesmo fardo maior do que se possa aguentar? Agora eu tenho que prosseguir. Como um leão você me contempla distante... Me vê rasgando a encruzilhada ao meio - desculpe não seguir o suposto destino. Há uma voz que me chama mata adentro à estrada nenhuma. Nem ao leste nem ao oeste, meu caminho é este: seguindo o Sol poente que cai sem cessar, no entanto não chega a cair jamais. Também hei de cair pra sempre, sem nunca chegar ao chão, tampouco tocar o céu. Vou possuindo as nuvens que tangem meus dedos nessa queda. Um dia, quando tiver todas na  mão, faço de névoas ponte pra qualquer lugar. Quero te ver sorrir de novo quando chegarmos lá